Judicialização da Saúde
Dra. Luciana Castro

Dra. Luciana Castro

15-09-24 |Att.: 17-09-24
Leitura: 11 min.
#Direito Médico

Judicialização da Saúde

A responsabilidade do profissional de saúde vem sendo alvo de processos judiciais há algum tempo, mas este fenômeno que pode ser denominado de judicialização da saúde não é novidade, como alguns acreditam.

A medicina, desde os primórdios de seu surgimento, fez emergir a figura de uma figura sábia, a quem as pessoas recorriam em momentos de dor e preocupação, denominado em determinado momento de médico.

Assim, a medicina se confundia, com poderes místicos e a filosofia, o que elencava ao médico um poder superior, pois ele curava o doente e restabelecia sua saúde de forma divina.

Hipócrates(460 a.C. – 377 a.C.), considerado o pai da medicina, foi responsável pelo reconhecimento da medicina, e foi também o responsável por destacar esta como uma área autônoma, diferente dos conceitos da filosofia e desvinculada das artes místicas.

Assim, naturalmente, com o reconhecimento da profissão de médico, veio concomitantemente, a vinculação de responsabilidades inseridas ali. E, quando falamos de responsabilidades aqui, estamos falando de resultado. Pois ao procurar o médico, o paciente busca solucionar o problema que lhe aflige, e assim, um resultado específico, ou seja, a cura para sua doença.

Ainda no século 18 A.C, o Código de Hamurabi, criado pelo Rei Khammu-rabi, já previa obrigações ao médico, como direito a pagamento em caso de cura de doenças dos olhos e feridas graves, assim como a responsabilidade em caso de insucesso do tratamento, que punia o médico amputando suas mãos p0r exemplo. Percebe-se que aqui, já se esperava um resultado o qual o médico tinha obrigação de conseguir!

215º - Se um médico trata alguém de uma grave ferida com a lanceta de bronze e o cura ou se ele abre a alguém uma incisão com a lanceta de bronze e o olho é salvo, deverá receber dez siclos.

215º - Se um médico trata alguém de uma grave ferida com a lanceta de bronze e o cura ou se ele abre a alguém uma incisão com a lanceta de bronze e o olho é salvo, deverá receber dez siclos.

216º - Se é um liberto, ele receberá cinco siclos.

217º - Se é o escravo de alguém, o seu proprietário deverá dar ao médico dois siclos.

218º - Se um médico trata alguém de uma grave ferida com a lanceta de bronze e o mata ou lhe abre uma incisão com a lanceta de bronze e o olho fica perdido, se lhe deverão cortar as mãos.

219º - Se o médico trata o escravo de um liberto de uma ferida grave com a lanceta de bronze e o mata, deverá dar escravo por escravo.

220º - Se ele abriu a sua incisão com a lanceta de bronze o olho fica perdido, deverá pagar metade de seu preço.

221º - Se um médico restabelece o osso quebrado de alguém ou as partes moles doentes, o doente deverá dar ao médico cinco siclos.

222º - Se é um liberto, deverá dar três siclos.

223º - Se é um escravo, o dono deverá dar ao médico dois siclos.

Assim, percebemos que a busca e a exigência pelo resultado advêm desde o surgimento da medicina. Não é uma coisa nova.

O termo judicialização pode ser novo, mas a questão não.

O erro médico

Nos tempos atuais, a judicialização da medicina, ou seja, a perspectiva de processos quando o paciente entende que foi vítima de “erro médico” (termo modificado pelo Conselho Nacional de Justiça, que agora definiu como “danos materiais ou morais decorrentes da prestação de serviços de Saúde) está em crescente expansão.

A iatrogenia (efeitos adversos possíveis, complicações causadas ou resultantes do tratamento médico) precisa ser comprovada para que o médico não tenha obrigação indenizatória ou ainda não seja condenado criminalmente.

Diferente da época do Código de Hamurabi, agora o médico pode defender-se, e existe um procedimento judicial, e, somente com demonstração de culpa, ele será responsabilizado.

Hoje, conforme o Conselho Nacional de Justiça – CNJ, existem mais de oitocentos mil processos relacionados a saúde em andamento, sendo que foram protocolizados mais de dois milhões de processos desde 2020, quando foram iniciados os estudos e estatísticas sobre o tema.

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Fonte: CNJ - Painel da Saúde

Conforme o quadro acima, somente no ano de 2024 foram protocolizados mais de trezentos mil novos processos sobre o direito a saúde.

Mas seria de fato um aumento nas falhas dos profissionais de medicina?

Ou seria uma mudança no paradigma das pessoas/pacientes?

Seria o advento do Dr. Google ou da inteligência artificial que agora criam diagnósticos e sintomas, com um simples digitar de palavras?

São vários fatores envolvidos para analisarmos sobre o porquê da judicialização ou como alguns juristas falam “aumento da judicialidade” na saúde.

O paciente busca um resultado

O paciente ao procurar atendimento médico para tratamento de uma doença busca alcançar um resultado, isto é fato, e vem dos primórdios como já elencado. E este resultado, com o avanço das tecnologias e do conhecimento científico de forma geral, ficou mais evidente e mais alcançável.

Todavia, percebemos também que o paciente não entende a existência de complicações, intercorrências e afins, e se o resultado não foi alcançado, é falha do profissional, ou ainda na denominação comum utilizada, erro médico (o melhor termo seria, conforme os juristas têm definido: danos decorrentes dos serviços prestados em saúde).

As vezes a busca pelo resultado beira o impossível, pois se requer situações que o corpo humano, somatizado as individualidades, pode não alcançar e mesmo assim, ocasiona insatisfação no paciente e por conseguinte, processo judicial.

Exemplos existem em diferentes áreas: o paciente sofre acidente de moto, tem uma grave lesão na mão, onde os ligamentos, tendões, nervos e ossos são gravemente lesionados. Vai para Hospital, o médico faz cirurgia reparadora, prescreve fisioterapia e os melhores medicamentos disponíveis. Mesmo assim o paciente evolui com infecção (osteomielite) ou ainda não recupera 100% dos movimentos. Ou é acometido por retardo de consolidação. Isso seria falha do profissional? Não. Claro que não.

Mas diversos processos com tais características existem nos tribunais, e as jurisprudências corroboram a não existência de culpa médica.

INDENIZATÓRIA. ERRO MÉDICO. Paciente que sofreu acidente de trabalho com esmagamento do ante pé esquerdo e ferimentos no tornozelo. Pretensão de reconhecimento de negligência médica por suposta falha no atendimento prestado e tratamento incorreto. Sentença de improcedência. Inconformismo do autor. Não acolhimento. Prova pericial que não constatou dolo ou culpa durante os atendimentos. Atendimento que foi realizado em conformidade com a literatura médica. Amputação parcial dos dedos do pé esquerdo que possui nexo causal com o próprio trauma sofrido. Não comprovação de negligência, imprudência ou imperícia no atendimento médico. Ausência de elementos para afirmar que houve erro nos procedimentos. Ausência de ato ilícito. Indenização descabida. Precedentes. Sentença mantida. RECURSO NÃO PROVIDO.

(TJ-SP - AC: 00129204220138260554 Santo André, Relator: Ana Maria Baldy, Data de Julgamento: 27/07/2023, 6ª Câmara de Direito Privado, Data de Publicação: 27/07/2023)

O paciente de forma simples e até inocente, narra apenas que o médico “colou o pino torto” ou que o Hospital não lhe deu o suporte necessário. Não que às vezes isso não seja verdade, mas a maior parte dela não houve falha aí, mas a gravidade da lesão impôs ao paciente um resultado que não lhe agradou, mas isso não significa falha do profissional, mas complicação inerente ao procedimento.

Os pacientes que se submetem a cirurgia plástica esperando o corpo da capa de revista, e quando advém uma complicação (como infecção por exemplo), não aceitam o resultado insatisfatório.

EMENTA: APELAÇÃO CÍVEL - AÇÃO ORDINÁRIA DE INDENIZAÇÃO POR DANOS MORAIS EM DECORRÊNCIA DE ERRO MÉDICO - ÔNUS DA PROVA - ART. 373, INCISOS I, II DO CPC - ALEGAÇÕES EXORDIAIS - INCOMPROVADAS - PROVA TÉCNICA CONCLUSIVA - DEVER DE INDENIZAR NÃO CONFIGURADO - SENTENÇA DE IMPROCEDÊNCIA MANTIDA - RECURSO IMPROVIDO. A teor do art. 373, I, do CPC compete à parte autora o ônus de provar os fatos constitutivos de seu direito, carreando aos autos elementos convincentes sobre suas alegações, sob pena de improcedência do pedido. Sabe-se que a obrigação dos médicos é, em regra, de meio e não de resultado, logo, o dever do profissional encerra-se com emprego de atuar consoante a boa técnica e aplicação de toda a cautela e diligência que a circunstância exija. A condenação à indenização seja material ou moral, decorrente do exercício da profissão médica, deve estar amparada na comprovação do implemento de ato ilícito, a efetivação do dano e, por fim, o nexo de causalidade entre os dois primeiro elementos. Se o conjunto de provas produzido nos autos, questionador do procedimento cirúrgico, que se submeteu o autor, com destaque na perícia médica conclusiva, não atesta que a complicação gerada pelo ato cirúrgico adveio de erro médico, bem como não evidencia negligência, imprudência ou imperícia do profissional que realizou o primeiro procedimento, impõe-se a manutenção da Sentença de improcedência do pedido indenizatório

(TJ-MG - AC: 19491648920148130024, Relator: Des.(a) Newton Teixeira Carvalho, Data de Julgamento: 26/05/2023, 13ª CÂMARA CÍVEL, Data de Publicação: 26/05/2023)

O paciente hoje está mais agressivo, mais exigente, determinando que o médico lhe dê um resultado com os menores sintomas possíveis e em menor tempo. Se assim não for, pode ocorrer processo e pedido indenizatório.

O médico se vê diante do “injusto”, pois mesmo adotando todos os recursos que a medicina dispõe, é processado.

Mas este direito do paciente está inserido na Constituição Federal, (inciso XXXV do artigo 5º - a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito). O paciente tem direito a buscar o Judiciário.

Responsabilidade médica

Mas não só esse determinismo do paciente tem causado o aumento no número de processos indenizatórios e éticos na área de saúde. O médico também é responsável!

Hoje o paciente não mais aceita o paternalismo médico, onde o profissional por entender que existe uma hierarquia entre ele e o paciente, em razão do conhecimento técnico, toma as decisões sobre o tratamento e não informa de forma adequada as possibilidades, resultados previstos e complicações existentes para aquele caso.

O paciente quer saber o que lhe acomete, e se houver um problema, quer ter o direito de escolher o caminho a seguir.

Um médico obstetra, por exemplo, que não solicita exames de ultrassonografia durante uma gestação, por entender que a paciente não teria recursos financeiros para a realização destes, e que, na evolução da gestação ocorrem complicações, que levam o feto a óbito, responderá por erro de diagnóstico, pois quem deve decidir se pode ou não realizar determinado exame (por questões financeiras, por exemplo) é o paciente!

Além disso, a falta de comunicação adequada entre o médico e o paciente tem sido pujante no aumento da judicialização.

Muitas vezes diante de uma complicação, o médico se furta de explicar de forma clara, direta e com empatia o que está acontecendo. Acredita que o paciente não precisa saber, porque não entenderia da parte técnica.

Hoje isso não é mais aceito!

Pior ainda é quando o profissional, antes da realização do procedimento não informou sobre a possibilidade e riscos ao paciente, que não teve o direito de escolher (claro que estamos falando dos procedimentos eletivos) se queria correr tais riscos.

Exemplo são as cirurgias plásticas, onde existe o risco de embolia, infecção, trombose, cicatrização irregular, formação de queloides, dentre muitas outras.

O termo de consentimento deve ser como uma bula de medicamento, se o paciente de fato ler, pode não querer realizar o procedimento, mas se realizar, estará consciente dos riscos envolvidos.

Todavia, a comunicação com o paciente não deve se ater ao termo de consentimento informado, mas as informações sobre o tratamento e riscos devem ser esclarecidos em consulta.

Isso facilita a prática médica e resguarda a relação médico – paciente, hoje tão precária e tão tênue.

Um último aspecto que interfere na boa relação médico - paciente e que, por conseguinte, pode fazer aumentar o número de processos, é a realização de prontuários médicos fracos, ruins, ilegíveis.

Quando o paciente tenta entender o que aconteceu, solicitando o prontuário médico, se depara com um documento ilegível, sem o devido acompanhamento. Como demonstrar dentro de um processo, um acompanhamento adequado e uma conduta dentro dos protocolos sem o devido prontuário?

Conclusão

Vários são os fatores que podem impactar a judicialização da saúde e o aumento do número de processos envolvendo médicos e alegação de falha profissional.

Mas mecanismos de defesa, como estabelecimento de protocolo de atendimentos, de documentos e uma consultoria jurídica eficaz podem auxiliar e prevenir processos e os desgastes de uma relação médico-paciente ineficaz.

Dra. Luciana Castro

Dra. Luciana Castro

Mestranda em Bioética pela Universidade del Museo Argentino. Especialista em Direito Civil, Direito Médico e da Saúde. Advogada formada pela Uni - Anhanguera e Membro da Comissão da Saúde OAB/GO; Membro da Comissão de Bioética OAB/DF; Membro (correspond.) da Comissão de Empreendodorismo Legal OAB/SP.

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